Povos minoritários
02/05/2010 22:12Quando tamanho não é documento
Dentre muitos povos mencionados no velho testamento, está a primeira grande potência mundial: o Egito, citado em Gn 12.10, logo depois do registro do chamado de Deus a Abrão. Fosse pela densidade demográfica, pelo poderio bélico, pelo desenvolvimento tecnológico, pelos atos de bravura, pela organização sociopolítica ou por qualquer outra realização heróica, o Egito certamente seria o grupo selecionado pelo Altíssimo para representá-lo no mundo de então. Todavia, a grandiosidade não foi o critério utilizado para essa escolha. De maneira surpreendente, Deus diz aos israelitas:
Porque tu és povo santo ao Senhor teu Deus: o Senhor teu Deus te escolheu, para que lhe fosse o seu povo próprio, de todos os povos que há sobre a terra. Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu, porque fôsseis mais numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas porque o Senhor os amava... (Dt 7.6-8a).
Israel: um povo minoritário
O amor é o critério divino. O ágape levou Deus a escolher um povo minoritário para transmitir sua benção à humanidade. Aliás. Essa seleção foi feita quando o povo ainda era apenas um projeto etino-social nas regiões celestes, isto é, existia potencialmente apenas na pessoa de Abrão; ele não possuía ainda descendentes quando o Senhor lhe assegurou: “de ti farei uma grande nação... em ti serão benditas todas as famílias da terra.” (Gn 12.1-3). A própria mudança do nome Abrão para Abraão revela o objetivo divino na construção de um povo complexo social: “Abrão já não será o teu nome, e sim, Abraão; porque, a vontade de Deus foi sempre estruturar cada traço ou elemento cultural à descendência abraâmica. Mais tarde, entretanto, o povo não aceitou completamente essa idéia; um exemplo disso foi o pedido de mudança de governo teocrático para monarquia, por parte da comunidade israelita (1Sm 8.7). Israel era tão minoritário que foi escolhido ainda em início de gestação. Deus, em toda a sua onipotência, não apenas selecionou o pequeno, mas preferiu o menor para comissioná-lo como embaixador, movido por seu critério imutável: o amor. É como se fosse um alarme divino à igreja, para que ela não relegue a um segundo plano os povos minoritários.
A chamada grande comissão, no Novo Testamento, é congruente com o Antigo Testamento. A ordem é discipular todas as nações (éthne, na língua grega; cf. Mt 28.19) e não apenas as mega-etnias, com seus milhões de indivíduos.
Nos dias atuais, uma boa parcela da igreja ignora a situação desfavorável dos pequenos grupos étnicos do Brasil e do mundo. Uma carta aberta de alguns indígenas diz o seguinte:
Nossa preocupação visa também alertar a Igreja de Cristo. Nas questões indígenas, quase nada termos ouvido falar sobre a manifestação evangélica de solidariedade, de orientação e de apoio. Ela tem vindo mais da Igreja Católica, do Conselho Indigenista Missionário, da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil...
Essa indiferença se deve a vários fatores, entre os quais o longo tempo para formar-se uma igreja ano meio desses povos; em geral, o missionário precisa aprender a falar e analisar uma língua ágrafa, bem como elaborar uma ortografia, um dicionário, o material didático necessário e a tradução da Bíblia (que serve como fundamento à igreja emergente). Contudo, outro fator determinante é o contingente populacional reduzido desses grupos sociais, comparado ao de outras nações do globo terrestre. Dessa perspectiva, parece que dificilmente a igreja evangélica concordaria com Deus em sua escolha por Israel, demograficamente tão minúsculo. Não é o que acontece hoje em relação á pequenas etnias?
As próprias missões aos indígenas refletem essa visão de indiferença para com as micro-etnias. O alcance da maioria absoluta dos povos no Brasil tem seguido o critério estatístico, havendo uma concentração maior do esforço missionário nos grandes grupos (com mais de 1.000 pessoas). Em segundo lugar, o interesse volta-se para os grupos médios (entre 300 e 1.000); em terceiro; para os pequenos (entre 100 e 300); e, finalmente, para os reduzidos (menos de 100). Além disso, quando há missionários, mesmo que poucos, nesses últimos grupos, a indagação mais insistente e desafiadora é: “Vale a pena?”
Contra toda essa lógica numérica, o Deus Trino escolhe Israel (quando ainda projeto de povo) para ser uma benção a todas as famílias da terra. Portanto, vale a pena.
Critérios de redenção
Os critérios divinos de redenção podem ser vistos sob duas perspectivas: a estatística e a representativa.
1. Critério Estatístico
A obra redentora de Cristo está extraordinariamente resumida em Romanos 4.35: “... o qual (Jesus) foi entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitou por causa da nossa justificação”. Ao considerar tão grande salvação, o logicismo unívoco aparente de boa parte da metodologia missionária é “quanto mais melhor”. Os relatórios eclesiásticos são avaliados sob o prisma da quantidade. A escola bíblica dominical gira sempre em torno de números. À assembléia congregacional loca importa à estatística. Hoje a igreja brasileira tem sido um referencial ao mundo cristão, como um modelo de explosão quantitativa. A biblicidade de tal abordagem é bereana (At 17.11), ou seja, pode ser atestada na Escrituras. Alguns textos demonstram de forma irrefutável o critério estatístico como bíblico; “... o qual (Deus nosso Salvador) deseja que todos os homens salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1 Tm 2.4)” ... ele (Senhor) é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos chegem ao arrependimento.” (2 Pe 3.9b). O próprio Jesus assevera: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura.” (Mc 16.15)
O equivoco está na redução da preocupação toda de Deus a esse aspecto numérico. Ao lado do critério estatístico, há o representativo. Os estudiosos da Numismática ou Numária (estudo das moedas) sabem que uma moeda deve ter dois lados. Sua validade está nesse detalhe. Ninguém gostaria de receber uma moeda com apenas “cara” ou “coroa”. Mas, de certa maneira, não é o que acontece na redução dos dois princípios divinos (estatísticos e representativos) a um só?
2. Critério Representativo
O critério representativo de evangelização é tão bíblico quanto estatístico. É o outro lado da moeda do plano divino de redenção. Uma abordagem sistemática logo demonstra isso. No livro de Apocalipse fica claro que, além de indivíduos, os agrupamentos humanos, como tais, também são alvos de Deus: “... com o teu sangue compraste para Deus os que precedem de toda tribo, língua, povo e nação.” (Ap 5.9b).
Em outras palavras, todas as etnias (grandes ou pequenas, médias ou reduzidas) deverão estar representadas diante do trono do Cordeiro. O imperativo gramatical e pragmático da grande comissão (Mt 28.19) não está no deslocamento (verbo ir), mas no discupular todas as etnias.
A posse de percepção de Abraão sintetiza esses dois critérios divinos: por um lado, ele é um indivíduo; por outro, como visto anteriormente, possui os genes biológicos e etno-sociais do, então, emergente povo hebreu. Um ser pessoal é requisito para a formação do social (Gn 2.2).
O problema não foi declarar que Sara era sua irmã, mas ter ocultado que ela era sua mulher. Esse reducionismo da realidade quase trouxe desgraças a inocentes da casa de Faraó e de Abimeleque, respectivamente. A igreja deve responder à preocupação estatística sem esconder a representativa. Será que de alguma forma não prejudicamos a propagação das boas novas ao reduzirmos a um os dois critérios divinos?
Estratégia geográfica
Há pouco foi explicitado que a ordem expressa na grande comissão (Mt 28.19) não privilegia o verbo ir, mas o discipular todas as etnias. De maneira nenhuma isso elimina a iniciativa do deslocamento geográfico. Jesus certa vez asseverou que “o campo é o mundo” (Mt 14.38). Enquanto Jerusalém era o centro da expansão do cristianismo, a movimentação espacial era insofismável, como pode ser visto na orientação do próprio Jesus “... que em meu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados, a todas as nações, começando de Jerusalém.” (Lc 24.47).
Esse deslocamento geográfico, no livro de Atos, é instigado a ser até mesmo simultâneo, em termos de objetivo. Ou seja, o mais urgente não é necessariamente o mais próximo. Daí as conjunções “tanto..., como..., e...”; “... mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda Judéia e Samaria, e até aos confins da terra”. (Atos 1.8)
A separação entre a estratégia geográfica e os critérios estatístico e representativo foi feita apenas por causa da relação intrínseca entre os dois últimos. Ou seja, a percepção do ser humano, a partir de sua natureza individual e étnica, requeria, por isso só, um tratamento específico. A morte e a ressurreição do Senhor Jesus atingem a humanidade nessas duas dimensões. Portanto, é através delas que a igreja deve rever sua vocação.
Extraído do livro: De todas as Tribos
Isacc Costa de Solza. Editora Ultimado 2003
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